segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Psicoses Secretas



É verdade o que nos disse Becker: a natureza zomba de nós! Sempre que estamos prestes a dar um salto evolutivo e confirmarmos a nossa hegemonia, alguma entidade supra ou infra-humana devolve-nos ao nosso devido lugar ― aquele espaço indefinido entre a besta e D’us ou entre o trono e a latrina.

As ruas foram descobertas como indispensáveis extensões de nossas celas e, que sem acesso a elas, tornam-se cárceres onde executamos nossas patéticas ocupações. Com a certeza de que o aviso de ‘não perturbe’ estará afixado em nossas portas, aceitamos o recolhimento como uma dádiva para as nossas almas: fazemos elevados planos de leituras, meditações, estudos, mantras e orações. Basta, entretanto, a simples lembrança do motivo do nosso recolhimento para que os monumentos civilizacionais que erguemos para ocultar a nossa mais humilhante verdade sejam demolidos. Por isso, o uso de máscaras passa a ser indispensável para esconder as carrancas psíquicas. Em nossa memória a repulsa do corpo com os seus fluidos contaminantes, aponta a nossa repressão primordial que pretende afugentar-nos da realidade acidental da vida, com os seus perigos mortais. 

Em nossa atmosfera, uma dança nada espiritual de filetes de RNA debocha da nossa finita condição de matéria que se deteriora e padece numa morte humilhante, arruinando a nossa fantasia de sermos pequenos deuses da natureza. Assim, como mãe de dois filhos, somente no fim da minha terceira quarentena recebo o meu diagnóstico: assustadoramente neurótica. Também pudera, quem não enlouqueceria parindo anjos com ânus?


GUSMÃO, A. S. Psicoses Secretas. In: Quarentena: memórias de um país confinado. Brasil: Chiado, 2020, p. 39