domingo, 12 de maio de 2013

A miséria de um consumismo opulento


Uma importante teoria do crescimento econômico defende que o consumo de massa é a última etapa que o coroa. Seria uma espécie de termômetro que sinaliza o aquecimento máximo da produção industrial e consumo de bens duráveis. Nesse estágio, haveria aumento da renda da população gerando demanda suficiente para sustentar o nível da oferta de bens. Então, se é preciso um alto consumo para crescer, o consumismo é desejável para que o país abandone o estigma do subdesenvolvimento?
Um alto nível de consumo estimularia a produção gerando empregos, aumentando a renda e formaria o círculo virtuoso da atividade econômica, mas não podemos deixar de considerar que também pode gerar inflação, endividamento e a insustentabilidade em longo prazo. Quando o assunto é consumo, há um problema muito mais complexo que se oculta sob as leis econômicas e que deve ser cuidadosamente analisado além das aparências e é esse o objetivo desse texto: dissertar sobre as causas que antecedem e impulsionam o consumismo.
Os objetivos e metas da economia são baseados no homem econômico, racional por excelência, que possui necessidades, desejos e expectativas igualmente racionais. Esse indivíduo estudado pela teoria do comportamento do consumidor age de maneira relativamente previsível e suas escolhas são pautadas no custo de oportunidade: uma escolha implica em deixar de fazer algo que se considera menos vantajoso. Por outro lado, a teoria do produtor considera a racionalidade dos empresários que se pautam em pressupostos e expectativas do consumidor para decidir o quanto e por quanto produzir. É a lei da oferta e da demanda que determina o comportamento dos preços e o funcionamento do mercado gerenciado por uma mão invisível.
As necessidades e desejos humanos são atendidos por bens econômicos. Para satisfazê-los o homem é obrigado a priorizar suas escolhas porque tem uma limitação orçamentária. Ele não pode obter tudo o que deseja ou necessita num determinado período. De posse de sua renda, suas escolhas devem gerar o mais alto nível de satisfação possível. Se a renda média da população aumenta, a demanda sobe porque as pessoas desejam comprar mais, permitindo satisfazer-se mais. Na realidade, alguns problemas decorrem em razão de algumas variáveis não previsíveis e de fatores externos difíceis de serem antecipadamente tratados.
Em primeiro lugar, a ciência econômica não é exata porque o comportamento humano não é previsível como os modelos econômicos desejariam. Em segundo lugar, a teoria econômica, para construir suas teorias, trabalha com um pressuposto conhecido como coeteris paribus, que significa dizer que seus modelos não incluem todas as possibilidades, deixando estáticas as demais – fato que não ocorre na vida real. Em terceiro lugar, a economia capitalista cria poderosos artifícios para que as limitações impostas aos indivíduos como a renda, desejos e necessidades sejam alteradas porque é preciso que as taxas de lucro do capital sustentem o sistema para mantê-lo sobrevivente e em expansão. Fixar-nos-emos no último ponto.
A economia é, primordialmente, a ciência da escassez porque seu objetivo é resolver os problemas relativos à produção, distribuição e consumo de mercadorias – escassas por definição. Ela é indispensável para a sobrevivência porque todo o funcionamento social gira em torno do seu sistema produtivo. Na antiguidade, a oikosnomia tratava da administração da casa que abrangia as propriedades e as cidades. Na idade média, o feudalismo orientava a produção de bens nos feudos que garantiam a manutenção das cidades e dos governos. No mercantilismo, os países operavam a economia de modo a acumular metais preciosos porque garantiam a riqueza e, por conseguinte, a sobrevivência e segurança da população. No capitalismo a economia tem a missão de incentivar a reprodução do capital por meio do aumento das taxas de lucro obtidas pela acumulação de riquezas. E riqueza no capitalismo é sinônimo de acumulação de mercadorias. Este é o tema do primeiro capítulo do livro I da célebre obra de Karl Marx – O Capital.
Ainda que este não seja um tratado marxista, mas uma tentativa de reavivar suas considerações, não podemos, então, deixar de consultar sua obra porque trata do capitalismo em suas origens, compreende o seu funcionamento, investiga suas contradições, antecipa a ocorrência de suas crises e, acima de tudo, desvenda o seu maior mistério – a mercadoria. 
“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estomago ou da fantasia, não altera nada a coisa.” (MARX, 1980, p.41)
Porque temos o imenso desejo de consumir, de acumular e de colecionar mercadorias? Seria apenas um impulso para atender as prerrogativas econômicas do crescimento, para garantir que o círculo virtuoso da economia gire ou existe algo especial que envolve questões não consideradas pela economia de mercado? Se o homem econômico é dotado de racionalidade, como explicar o consumo que ignora sua restrição orçamentária e a priorização das escolhas? Seria a mídia a grande vilã das massas que as empurra para o abismo do consumismo? Será o poder dos oligopólios que destrói o princípio da racionalidade e escraviza a sociedade para a servidão e viciação do consumo?
Embora o poder da mídia, dos oligopólios e das estratégias modernas do capital corrobore para consumismo, já no século XIX o caráter fetichista da mercadoria foi descrito por Marx e o seu poder misterioso era comparado ao dos totens dos indígenas e das carrancas das embarcações. Esse mistério se apresenta com a descoberta do duplo caráter da mercadoria: o valor de uso e valor de troca. Com a utilidade a mercadoria tem a sua essência, o seu objetivo de uso para satisfazer as necessidades humanas. Pela quantidade de trabalho contido na sua (re)produção, a mercadoria tem o seu valor de troca ou preço determinado. Curiosamente os economistas políticos identificaram que não há relação entre a utilidade e o preço de um bem. Não podemos sobreviver sem água, mas o seu preço é infinitamente menor que a de um vinho. Poderíamos supor que o fator determinante é a escassez e isso é relativamente verdadeiro, mas não é a resposta definitiva e nem explica o desejo humano de acumular.
Uma maneira simples de trazer à tona as razões primordiais do consumismo é citar algo que Marx publicou em 1867 e que liga a satisfação dos desejos humanos com o caráter fetichista da mercadoria. “Desejo envolve necessidade: é o apetite do espírito e lhe é tão natural como a forme para o corpo… a maioria (das coisas) tem valor porque satisfaz as necessidades do espírito”. Aqui encontramos a chave da questão: o sistema capitalista tem o poder de transformar desejos em necessidades e (acrescentamos) o de criar escassez ao invés de resolvê-la. Contudo, não é somente isso. O próprio processo produtivo determina não só o consumo, mas o ritmo desse consumo.
“A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade ao material, […] por conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção produz o consumo, na medida em que 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo; 3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição do produtor, na medida em que o solicita como necessidade que determina a finalidade.”; (MARX, 2011, p. 47)
Ora, vimos então, que não há qualquer artifício do sistema, ou algo ex-post que estimule o consumo, ao contrário, esse desejo é orgânico, nasce com a lógica do sistema produtivo capitalista e se perpetua com a continuidade desse processo. Logo, não basta a razão para frear o ato de consumir ou reduzir os níveis de consumo. É preciso que a lógica da produção se altere, determinando nova lógica para o consumo. Em outras palavras, não é a demanda que se impõe à produção, mas a produção que determina o modo e níveis de consumo. A demanda inspira a produção e esta inspira a demanda. Porém, a lógica do sistema não pressupõe a sua infalibilidade. O seu paradoxo é também orgânico cuja prova maior é a crise, estagnações e limitações. A tecnologia e os seus efeitos da superprodução interrompe a lógica da escassez e impõe ao sistema a necessidade de criar mecanismos acessórios à produção capitalista, representados e satisfeitos pelo capital financeiro.
Entendemos que a sobrevivência do homem é garantida pela satisfação das necessidades, mas a satisfação espiritual, emocional e psicológica do ser humano é da ordem dos desejos e o ato de consumir realiza o fetiche humano de alimentar um aspecto de sua personalidade que ele não é capaz de explicar com precisão. Esse desejo não é da ordem da racionalidade e, portanto, foge das possibilidades das explicações econômicas, mas a indústria foi extremamente pródiga ao capturar nossos gestos, hábitos, gostos, desejos e vícios como combustível para o seu motor, dominando o homem em seus anseios que a economia classificou como necessidades e desejos que, em grande parte, são artificiais, mas absorvidos pela lógica do sistema como inerentes.
O poder enfeitiçador da mercadoria faz parte de sua própria natureza, assim como o desejo de consumir é o maior efeito gerado pelo sistema, garantindo que a natureza do capital se realize na acumulação de riquezas, o que significa dizer acumulação de mercadorias. E ela é a manifestação da riqueza porque concentra trabalho humano – a verdadeira fonte de riqueza da sociedade capital.
Descobrir a causa que nos leva ao consumismo não soluciona a questão atual de explicar à sociedade esse fenômeno que produz endividamento e desequilíbrios de toda ordem. Contudo, sem a compreensão da origem damos vozes a consultores financeiros com suas cartilhas genéricas que somente ampliam o sentimento de culpa dos indivíduos incapazes de cumprir regras tão óbvias: Compre à vista! Não acumule dívidas! Não gaste mais do que ganha! Utilize o 13º para pagar dívidas! Não use indiscriminadamente o cartão de crédito e não entre no limite do cheque especial! Registre os seus pequenos gastos! Cuidado com liquidações! Não compre o desnecessário! Poupe 10% da sua renda! Etc.
Esses conselhos não funcionam porque se dirigem ao aspecto racional do ser humano. Não é a necessidade, é o desejo, não tem o consumo como causa, mas o objeto do consumo. Também não há razão para que assumamos uma visão reacionária culpando o sistema. Um bom início é compreender o seu funcionamento, especialmente em suas particularidades que nos atingem mais intensamente e relacionar o que de nós é estimulado para que nossos valores e princípios sejam adormecidos em função de uma escolha que nos leva a cultuar a aparência e buscar a satisfação de algo que não conhecemos e que nunca é plenamente realizado.
O consumismo desenfreado não é benéfico para a economia nem para o homem. É hora de planejar a nossa vida aproveitando-nos do conforto da modernidade e da tecnologia, sem escravizarmo-nos. Não necessitamos desprezar a beleza e o bom gosto. Sigamos o movimento do progresso sem espelharmos em países que possuem histórias e trajetórias completamente distantes de nós. Construamos a nossa própria história, identidade e forma de vida porque essa é a grande possibilidade que se abre aos países jovens que ainda não têm sua história consolidada. Somos o novo mundo, mas não mais crianças e devemos assumir uma maior maturidade como homens econômicos.
Bastante oportuno finalizamos esse artigo lembrando-nos da mercadoria universal que dá vida ao capital financeiro tornando-o tão ou mais importante que o capital produtivo.
“O que posso pagar, ou seja, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o dono do dinheiro. Meu poder é tão grande quanto o poder do dinheiro. [...] portanto, o que sou e o que posso não está determinado por minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mulher mais formosa. Logo, não sou feio, já que o efeito da fealdade, seu poder de dissuadir, foi aniquilado pelo dinheiro. Eu, segundo minha individualidade, sou paralítico, mas o dinheiro me dá vinte e quatro pés; logo não sou paralítico. Sou um homem mau, desonesto, inescrupuloso, desalmado, mas como se prestam honras ao dinheiro, o mesmo se estende ao seu proprietário. O dinheiro é o bem supremo, e por isso quem o possui é bom. Além disso, o dinheiro me põe acima da condição de desonesto; pressupõe-se que eu seja honesto. Sou um desalmado, mas se o dinheiro é a verdadeira alma de todas as coisas, como pode ser desalmado quem o possui? Com ele se pode comprar os homens de espírito, e o que constitui um poder sobre os homens de espírito não é ainda mais espiritual que os homens de espírito? Eu, que através do dinheiro posso conseguir tudo a que o coração humano aspira, por acaso não possuo todas as faculdades humanas? Acaso meu dinheiro não transforma todas as minhas incapacidades em seu contrário?” (GOETHE, apud Marx, 2005, p. 168)



MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia política. 4. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
________. Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Martins Claret, 2005.
________. O Capital. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.