sábado, 4 de maio de 2013

A tese e a antítese

Eis que finalmente alcançamos o entardecer da era moderna. O mundo novo envelheceu. A corrosão do tempo atingiu o coração do sistema tornando frágil o vigoroso gigante. Ante o monumento vislumbra-se o poder e a potência de algo que se apresenta como intransponível, absoluto, permanente. Crises, ciclos e todas as ordens prevendo apenas a única lei possível: a de que o capital manteria a sua centralidade ainda com mais vigor. Lei; fato observado; verdade estabelecida; regra inviolável - não fosse a existência dessa espiã que a sequencia dos fatos persegue: a história.
Pudera o registro da história se apoderar dos fatos de tal maneira que o presente fosse nominado, contextualizado e processado positivamente de tal maneira que fosse possível afirmar: estamos atravessando tal ou tal período. Ou de outra forma: se finda mais uma era! eis a nova que se apresenta! assisto ao nascimento de um novo sistema cuja ordem em muito difere do precedente! Mas nada disso nos é ofertado. Temos apenas uma intuição histórica de que algo novo nos sucede, de que alguma transformação se desponta, de que o existente engendra-se ao que se estabelece. A morte não é estanque; é um processo. Processo que anuncia a chegada de algo e a partida do que ainda vive. Enquanto processo não pode ser definido, não deve ser conceituado. O passado não se extingue e o futuro não se divorcia dele. Tudo é transformação, evolução, progressão, por isso nossa dificuldade perceptiva porque o caos faz parte do ciclo de renovação, de reconstrução e não há linearidade nos movimentos.
Por isso, talvez, a história tenha cheiro de passado, de coisa velha, porque tradicionalmente só deu conta de fornecer informações objetivas sobre uma realidade findada, conseguindo estabelecer linhas e sequências lógicas entre períodos, traçar limites dos acontecimentos, classificar, nominar e dissertar apenas após a transposição dos fatos. Em outras palavras, não é fácil descrever com precisão sobre o presente para além de uma análise conjuntural. É deveras arriscado argumentar sobre uma realidade latente que ainda não foi parida porque se espera que o nascimento do novo tenha como pressuposto a morte do velho. Não há mãos habilitadas para desligar os aparelhos e impedir uma sobrevida, assim como não há para revigorar essa sobrevida de maneira sustentável. O que nos resta é esperar sua morte natural que, ao invés da extinção, levará a uma metamorfose.
Assim dizemos porque é preciso que o antigo sistema amadureça a tal ponto que seja capaz de criar todas as condições necessárias para que outro emerja. Por isso não pode ser interrompido, pausado ou paralisado como pretendiam tantos revolucionários do marxismo. As revoluções não teriam a função de pôr termo ao sistema, mas de abrir suas veias, acelerar sua pulsação, abrir suas entranhas e desnudar sua essência. A revolução nascida com aquele objetivo seria estéril desde o berço porque o próprio Marx revelou os paradoxos e contradições sistêmicas de tal maneira que o processo de evolução geraria sua autodestruição transportando-a para um plano superior.
Em seu Manifesto, Marx diz: “vimos que os meios de produção e de troca que serviram de base à formação da burguesia foram gerados na sociedade feudal.” (MARX, 2001, p. 32). Contudo o fim do feudalismo não foi anunciado, determinado, decretado; simplesmente, continua Marx, “as condições da propriedade feudal deixaram de corresponder às forças produtivas já desenvolvidas” (Ibid). E perguntamos: por qual força revolucionária as formas de produção feudais deixaram de existir? Pela burguesia que se desponta no momento em que o próprio desenvolvimento do sistema de produção feudal anuncia o seu progresso máximo e, paradoxalmente, o seu limite de progressão.
Analogamente o sistema capitalista “criou forças de produção mais imponentes e mais colossais que todas as gerações precedentes reunidas” (Ibid). Em dois séculos acumulou riqueza e tecnologia capaz de invalidar o objeto primeiro da economia: a escassez, embora continue subsistindo em aparência. Bastaria enxergar as antíteses que se apresentam como barreiras à continuidade do sistema indicando mudanças e transformações profundas, tais como: a falência múltipla dos mecanismos e sistemas sociais, confirmando a validade da afirmativa marxiana de que ainda vivemos na pré-história da civilização marcada por imposições morais do campo do domínio, do controle e da disciplina; as fissuras abertas nos processos e relações sociais; o surgimento de uma nova geração de indivíduos que se apresentam com novas ideias, pensamentos, ações e atitudes, que rejeitam o instituído e questionam a constituição das coisas e das hierarquias; a expansão valorativa dos trabalhos imateriais e do chamado capital social; as revoltas localizadas que ganham amplitudes globais favorecidas pelas redes e tecnologias de comunicação; os novos anseios de liberdade e quebra dos limites, reflexões, espiritualizações, novas ecologias etc. todas elas apresentam o mesmo caráter: de um grito abafado pela inoperância do sistema em dar prosseguimento à expansão desse novo formato de riqueza e ressignificação do valor.
A isso damos o nome de sociedade de transição que, dialeticamente, identificamos serem esses mesmos elementos responsáveis pela saturação do sistema que asseguram fôlego ao capital. É por meio deles que o capitalismo sobrevive ainda que os seus pressupostos já não mais ofereçam validade efetiva. O valor criado pelo trabalho imaterial - ideias, processos relacionais; a capacidade incessante do capitalismo em transformar desejos em necessidades; o domínio articulado da política-economia-conhecimento; a naturalização dos dispositivos dos poderes constituídos; a ditatura do capital e a homogeneização do homo oeconomicus e do homo faber, a fragmentação dos setores, do conhecimento e das ciências em geral; o favorecimento da sobrevivência e alienação da vida;  todos esses indicativos corroboram para o entendimento e constatação de que estamos, nesse momento, construindo a última etapa da sociedade pré-histórica - que sustenta as bases para a sua transição.
Por fim, a grande síntese seria a nova humanidade, ou a verdadeira humanidade de acordo com Marx, que dará início à história humana propriamente dita, formada por uma sociedade em que o homem da ética supera o homem da moral e que a felicidade impõe seu domínio para que a vida assuma o lugar da sobrevivência. Em uma palavra: a sociedade humana que trataremos de esboçá-la.