quarta-feira, 24 de abril de 2013

Lutas Parciais


Ecos de um Grito, 1937. David Siqueiros (1896-1974)
Uma pergunta nos foi lançada: existe aqui a tentativa de uma ‘teoria geral’? Respondemos que sim e que não. Dizemos sim para contrapor-se aos movimentos de remendos da ciência e estruturas socais. Dizemos não porque nenhuma teoria que se propõe geral, de fato é. Só o é quando na proposição de um novo horizonte que tornem obsoletos ou sem sentido os velhos padrões, paradigmas, sistema de valores, instrumentais, técnicas, instituições, organizações e conceitos. Uma roupa velha que se desgasta pelo tempo, cujo tecido que a compõe aos poucos se esgarça ou se rasga, pode ser remendada e utilizada, reutilizada, aproveitada, reaproveitada até um número considerável de vezes, durante um tempo demasiado longo. Porém, chegará um momento em que as rupturas de suas fibras far-se-ão tão evidentes que os remendos servirão apenas para ampliar as evidências de uma inevitável inutilização da peça. As feridas do remendo abrirão novas fendas, que revelarão outras, que desconstruirão outras etc. etc. É quando aquela roupa não mais atende pelas suas funções – de vestimenta, de conforto, de proteção, de identidade.
O velho tecido mantem-se tecido, mas não pode mais ser uma vestimenta. A tecnologia de suas fibras por certo é superior à da roupa anterior, mas, ainda mais certamente, é inferior às tecnologias emergentes.
Pode adaptar-se às necessidades transitórias, cotidianas, urgentes e acessórias, mas a eficácia será sempre parcial. Enfim, a roupa que tanto nos acostumamos tornou-se um pedaço de tecido velho que, pelo costume, não nos desfazemos porque os novos tecidos ainda são incertos demais, são modernos demais, são diferentes demais e, sobretudo, são estranhos aos nossos padrões. Todas as técnicas, modelos e teorias foram construídos para explicá-lo, moldá-lo e para compreender o seu funcionamento. De um momento para o outro não é possível imaginar a não existência ou substituição do objeto central de todo um arsenal estrutural e conjuntural. A única maneira de abandonar o velho tecido é fazendo com que a postura daqueles que o utilizam seja a de desapego pela consciência da sua não serventia para as necessidades atuais.
É assim que propomos uma teoria geral porque não intentamos desenvolver uma teoria que se encaixe com as velhas existentes, mas não a queremos fazer abandonando o caminho já percorrido pelas novas tecnologias que comporão o novo sentido social. É geral no sentido de romper com o apego ao velho pedaço de pano. É geral no sentido em que se compromete a compreender o funcionamento social como um todo, desprezando as divisões disciplinares e fragmentárias da velha ciência. É geral no sentido de que nela a economia, a política e a sociedade são uma e a mesma coisa. É geral porque não despreza as contribuições, não despreza as diferenças. É geral sem ser totalitária porque é uma perene construção e reconstrução, mas jamais um remendo ao que já está esgarçado demais.
O segundo questionamento apresenta um aspecto epistemológico evidente. O que seria uma teoria diante de uma realidade pulsante, dinâmica e farta de letras? Um novo papiro, um novo tratado, uma nova tese, um novo livro, um novo artigo, um novo qualquer coisa escrita… basta de teoria! dirão muitos. Outro retrucará: mas o que é a teoria se não a observação e revisão (profunda) de uma prática? Há, dizem, teorias que se fazem em oposição a uma prática, ao senso comum e que especulam um ideal. Apressamos em dizer que não a construiremos oposta à prática porque não pretende ela ser um ideal a ser seguido, mas um horizonte esboçado a partir das novas realidades que emergem pelas antíteses existentes – não em oposição ao conhecimento vulgar, porque a tratamos como um comunismo de ideias. Não se trata de uma especulação porque, ainda que se ligue aos princípios, não se fixa a eles, suas conexões são flexíveis. Não há relacionamento, há engendramento. Não há oposição, há comunhão. Não há setorização, há redes. A teoria surge aqui em oposição a um manual. Opõe-se a um conjunto de preceitos sistemáticos imposto como metas, objetivos e leis.
Por certo, não recusamos admitir a evolução positiva do conhecimento. No entanto, considerando a trágica realidade factual e empírica do caos que atinge as sociedades modernas, implantamos a dúvida sobre a permanência eficaz da evolução dos métodos modernos das ciências, especialmente das humanas e sociais, para o contexto contemporâneo. À medida que as ciências se fragmentam, isolam-se e separam-se da ética e da política, o ser humano passa pela trajetória histórica do zoon politikonaté à sua plena racionalidade como o homo oeconomicus. Podemos dizer que passamos da sociedade política para a sociedade de mercado. Para os antigos essa passagem representaria a decadência, para os modernos a ascensão e para os contemporâneos o caminho do meio, a transição.
Na tentativa de deslocar-se da esfera abstrata, podemos posicionar-nos na ciência econômica e observar como as questões e focos de interesse da moderna economia levaram suas escolas a criar uma realidade adaptada às suas preocupações teóricas, uma virtual reality na qual todos os indivíduos são apenas produtores e consumidores. Uma virtual society cuja existência e coesão dependem da criação de mecanismos artificiais de relacionamento entre indivíduos primariamente associais – ressaltamos aqui o mecanismo mercantil como espaço central que deriva ou norteia a socialização. Nesta virtual humanity, composta de indivíduos que agem como mercadorias vivas, a política, a civilidade e as relações afetivas são meros espasmos do mercado.
Sem essa modelação, possivelmente, a teoria econômica moderna encontraria excessiva dificuldade em aproximar-se das ciências exatas e, assim, da excelência científica. Sem transformar os trabalhadores, consumidores e produtores em variáveis independentes (por isso o pouco caso com as interações sociais), assim como seus comportamentos em curvas e gráficos seria impossível a tentativa de separação da economia das demais esferas do conhecimento humano. Se por um lado o perfil matemático da economia a tornou aparentemente mais objetiva, por outro lado, criou a sensação de que todo movimento econômico pudesse ser previsto através de equações – o que a realidade demonstra a nítida falência. Pelo mesmo caminho trilharam outras ciências, conduzindo o estudo da sociedade a uma transformação em um aglomerado de estudos particulares sobre regiões específicas do fato social e, dentre estas, a região econômica. Pelas palavras de ELIAS (2005):
“A divisão das disciplinas acadêmicas, a orientação preponderante da biologia e da ciência médica para o organismo vivo em isolamento e para as estruturas orgânicas específicas das espécies têm levado a uma lastimável confusão na tradição linguística e intelectual. Isso dá a impressão de que o organismo humano singular [...] funciona como um modelo do que se entende por indivíduo. [...] A vida comunitária das pessoas, sua sociedade, suas estruturas e processos afiguram-se, em contraste, como não sendo produzidos pela natureza e, portanto, não sendo efetivamente reais. [...] Desse modo, a especialização acadêmica contribui para construir um arcabouço inadequado, para postular a natureza e a sociedade como opostos.” (ELIAS, 2005, p. 159)
Esse modelo, segundo Elias, conduz a uma espécie de virtualização das relações e não só delas, mas do homem real em suas afeições. Por outra via, a especialização das ciências apresentou resultados espetaculares em todos os ramos do conhecimento, contudo, não faltam aplausos. Falta, isso sim, uma compreensão profunda e generalizada das consequências que os modelos simplistas/reducionistas geraram por toda parte. Por isso, tentamos explicar que o processo de especialização da especialização do conhecimento entrecruza-se com as formas extremas de caos social, entendido como um conjunto de variáveis retroalimentadas composto pela miséria, pela violência, pela corrupção, pelos desastres ambientais, pelas doenças da modernidade, pelos transtornos psicoemocionais etc.
Deve ficar claro que os pontos a que resolvemos chamar de caos social são considerados apenas como processos constituintes de uma realidade superior, agigantado pela ditadura da fragmentação do conhecimento científico. Devemos buscar entender como o processo do ‘fazer conhecimento’ e do ‘sofrer as ideologias' influenciam a sociedade através de paradigmas, leis e códigos que nos são apresentados como elementos naturais e inerentes ao homem enquanto ser social. Esses ‘coágulos ideais’ nos regem, provocando afirmações vazias que geram verdadeiras epidemias sociais, quais sejam: o conformismo e a descrença. Vemo-nos, assim, convencidos da impossibilidade de uma transformação e de uma mudança social efetiva que possa vir a derrubar os paradigmas que nos escravizam e que alienam o homem de suas potencialidades.
E qual a relação de tudo isso com as lutas parciais? É justamente esse aspecto fragmentário e parcial que nos convida à mesmice e à miopia. Não dizemos que elas não devam existir. Não há uma defesa às guerras totalitárias e genéricas, mas há um caráter inerte dessas lutas que impede que suas bandeiras mantenham-se erguidas e faça com que o seu hasteamento apenas estimule os discursos presos à legalidade, às reações e resistências. Há um esgotamento no sistema de normas e leis garantidor dos direitos e deveres. Há toda uma confusão à defesa de que os transtornos sociais ocorrem em função do descumprimento das leis estabelecidas ou por uma ‘ausência de ética’. A esse respeito Leila Domingues Machado faz uma colocação, ajudando-nos a adentrar numa outra dimensão importante: a ética.
“[...] Há, nessa forma de análise uma solicitação de que as regras se tornem mais coercitivas para que os limites possam ser impostos. Dentro da perspectiva moral esse raciocínio aplica-se perfeitamente. As regras estão dadas, restaria obedecê-las. Quando a obediência não ocorre há um apelo a um maior rigor que venha garantir o seu cumprimento. Contudo, essa visão parece não questionar as razões dessa impostura, talvez porque a julguem desobediência.” (MACHADO, 1999, p. 152)
É exatamente quando as formas de controle, de coerção e de pacto social falham que, segundo Leila, essas formas-subjetividades deveriam ser questionadas – e não ampliadas indiscriminadamente. Não é pela ética; é pela moral que se apela. Por isso a sociedade solicita mais rígida aplicação das fórmulas fracassadas. Pede-se paz para a polícia; saúde aos hospitais; sanidade aos hospícios; cidadania às escolas; justiça aos tribunais e, sobretudo, clama-se por melhorias de formas de sobrevivência em detrimento da vida em sua potência criadora.
Fora/Dentro Fulano! Prendam/Não Prendam menor infrator! Não Compre/Compre mais tomate! Derrube/Levante o Governo! Criança/Bebês na escola! Ficha Limpa/Suja já! Chega de corrupção/corruptos! Sim/Não ao casamento gay! Fora/Aos costumes e à família! A terra é/não do índio! Invista/Não invista no esporte! Não/Queremos estágio! Pena de Vida/Morte! Etc. Etc.
As lutas parciais são importantes para o exercício do poder, mas a fragilidade da aderência a essas lutas bem como as parcas compreensões que circundam o tema empobrecem o debate, transformando a luta numa arena representada por interesses nobres e menos nobres ou totalmente alienados.
Em sua maioria, parece não perceberem que combatem apenas as consequências sem a reflexão das causas. Falam sob uma visão parcial, personalista e partidária sem o trabalho de uma reflexão sistêmica. A exigência da sociedade moderna é para que a lei reja, normatize, proteja e estabeleça sansões morais, que em nada tem a ver com a ética. De fato não queremos a reforma do agressor, a transformação do corrupto, a mudança do menor infrator ou a reforma do sistema prisional, p.ex. O que na verdade se pede são rígidas punições em clamores exaltados pelo rancor, sem refletir sobre as causas de tais intransigências, mas a ideia caduca de que as leis não necessariamente traduzem justiça já era difundida por Platão (428 A.C) e ela jamais poderá tornar mais leve o peso de nossas responsabilidades enquanto sociedade.
“— É que a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações, e por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em assunto algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos.” (PLATÃO, 1983, p. 242-243)
Abaixemos então nossas bandeiras enquanto a nossa luta não for compreendida, enquanto o nosso adversário não for de todo conhecido. Aqui não abraçaremos as lutas parciais, porque a nossa causa e o nosso adversário já nós é conhecido: a ignorância – geradora da corrupção, da violência, da inatividade, da miséria, da inoperância, da moralização absurda, do fanatismo, da guerra e da doença. Apenas ela. As lutas do cotidiano, deixaremos a cargo daqueles com capacidade de hastear bandeiras e compreender profundamente as conexões entre o tema e a crise sistêmica.
A nossa luta não carrega bandeiras porque passamos a compreender que não é possível que as leis ou que a moral operem transformações significativas na sociedade. Percebemos que esses vetores, por si só, não podem operar mudanças imperativas nas formas de processualidade apenas dedicando-se a combater os seus efeitos. Desse modo é que se tornam banais as bandeiras que rezam a ‘erradicação do trabalho infantil’, o ‘combate à pobreza’, ao crime, à fome, à violência, à exploração sexual, à corrupção etc. São emblemas que o homem da moral carrega e que o homem da ética parece não tomar partido. A luta política, na sociedade moderna, é pela manutenção (da ordem, da vida e da sociedade) e pela expansão (da riqueza e do controle). A luta da (e pela) ética é o apelo à vida e ao desenvolvimento da potência das formas de vida.
"— Ora, em suma, é precisamente este absoluto que a procura, semelhante a um homem obstinado e ignorante que não permite que ninguém faça alguma coisa contra sua ordem, e não admite pergunta alguma, mesmo em presença de uma situação nova que as suas próprias prescrições não haviam previsto, e para a qual este ou aquele caso seria melhor." (PLATÃO, 1983, p. 243)

REFERÊNCIAS 
MACHADO, Leila Aparecida Domingues. Ética. In: Psicologia: questões contemporâneas, Maria Elizabeth Barros de Barros (org). Vitória: EDUFES, 1999.

PLATÃO. Político. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.