sábado, 30 de novembro de 2013

Sociedade da Práxis Morta

Não podemos abandonar a hipótese de um neo-obscurantismo especializado, produzido pelos mesmos movimentos das especializações, no qual o próprio cientista torna-se ignorante de tudo aquilo que não concerne a sua disciplina e o não-especialista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado aos cientistas, que não têm tempo nem  meios conceituais para tanto. Situação paradoxal em que o desenvolvimento do conhecimento instaura a resignação à ignorância e o da ciência significa o crescimento da inconsciência (MORIN, 2005, p.17)

Que nos cobrem meios de resistir a esse conformismo, mas não me convidem aos sítios de lugares comuns, onde por tais paragens jazem teorias e escolas divisionárias. Que nos seja permitido cometer heresias teóricas, devolver filosofia à consciência e fazer com que a filosofia tome ciência.

Ora, qual é pois essa ciência que insulta a utopia que lhe alimenta? Qual é a ciência que vampiriza a sociedade e se alimenta de paradigmas mortos? Que ousadia é essa que vive a pedir paciência à miséria, às angústias e à esperança enquanto embriaga-se do vinho envelhecido? Não se apercebe ela que o vinho já se tornou vinagre e que o torpor é intoxicação que produz cegueira?

Não queremos essa ciência de oposição ao que está ao sol, brigando por uma ponta de claridade, mas que foge sempre do confronto final. Se diz ser prudente e alimenta a esperança de seus adeptos onde os mais humildes a obedecem obcecados em descobrir um pano de remendo e os mais ambiciosos anunciam a descoberta do véu de Isis. [PAUSA]


Fui atender ao telefone. Era Homero dizendo que a história de tais cientistas da tal ciência lembra muito a história de Penélope, Sísifo e Ícaro. Penélope, que esperava por seu marido há 20 anos, adiava a decisão por um de seus pretendentes com a seguinte estratégia: dizia ela que quando terminasse uma mortalha que tecia para o seu pai, decidiria por um deles. No entanto, todo o trabalho do dia era desfeito à noite, nunca sendo finalizado. [estaria falando de um grupo que não se cansa ‘de tentar a impossível façanha de tecer o ideal teórico de uma certa categoria do mundo’?]

Sísifo, Rei de Corinto, que foi condenado ao inferno, com o agravante de subir uma montanha tendo às costas um penedo que sempre caía e deslizava morro a baixo — o que lhe impedia de cumprir sua missão. [não parece mesmo personalizar aquele que ‘enfrenta a heterodoxia sempre em reconstrução’?]

Ícaro, filho de Dédalo, que consegue escapar do Labirinto usando asas de cera, embora logo se projete no mar Egeu ao ter suas asas derretidas pelo calor do sol. [parece mesmo representar o sonho, aquele ‘que fracassa na tentativa de altos vôos de um pensamento particular’]. 

Hum... essa história foi recontada por Michel Beaud e Guilles Dostaler... cientistas econômicos e estes nunca bastam. Para compreender, é preciso voltar a gênese: 

E no princípio, 
era toda a ciência de uma mesma língua e de uma mesma fala.
E aconteceu que, partindo ela do oriente, achou um vale numa terra fértil e habitou ali.
E a ciência floresceu e se multiplicou e disseram-na umas às outras: Eia, façamos teorias e assentemo-na-las bem. E foi-lhes a teoria por ideia e o método por reflexão.
E disseram: Eia, edifiquemos nós um Conhecimento próprio em forma de torre cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra.
Então desceu o Senhor da epistemologia para ver a cidade e a torre que os filhos da ciência edificavam;
E o Senhor disse: Eis que a ciência é uma, e todas têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer.
Eia, desçamos e confundamos ali as suas teorias, para que não entenda um a teoria do outro.
Assim o Senhor as espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade.
Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor da epistemologia a língua de toda a ciência, e dali as espalhou sobre a face de toda a terra.

Contudo, os habitantes de Babel perseguiram teimosamente o seu intento e mantiveram-se a espalhar sua geração. De Xenofonte nasceu a Oikosnomia que esposou Aristóteles que morreu de velho. Oikosnomia então se prostitui e assim viveu pelo resto dos seus dias com seus filhos espalhados pela face da terra. De Tomás de Aquino aparece Duns Scot implantando a discórdia. Thomas Mun dá sucessão à Philipp von Hörnigk que pariu Colbert que foi sucedido por Locke, que de uma outra nasceu Dudley North e de outra, Cantillon e da amante David Hume e Vincent de Gournay e da Terra brotou Quesnay. A Mecânica gerou Smith que adotou o mecânico Say, que foi advogado por Ricardo e depois Mill. Malthus, o bastardo, cria mais outro tanto de excedente que é alistado pelo exército industrial de Marx que foi derrotado pelo batalhão marginal de Menger, Jevons e Walras. O abrandamento  veio com a eficiência de Pareto e restou a Marchall contabilizar as perdas que foram geradas pelas falhas encontradas por Pigou,  mas foram Schumpeter, Mises e Hayek que entenderam que a destruição havia sido criadora, menos nefasta que o problema insolúvel de um certo terrorismo que levaria ao caminho da servidão. 
E para que o projeto da torre fosse retomado, era bom que se instituísse o protestantismo que os combateriam. Veblen e Galbraith presidiram o ministério. E então no meio do caminho para a torre, eis que Phillips projeta uma curva criando um trade-off entre Coase e Sen. 
Então já era tempo de um patriarca assumir o comando da obra e Keynes aparece então como o pai das gerações modernas com os pós-keynesianos e neokeynesianos. Mas eis que dos antepassados bastardos ressurgem os novos clássicos, os neoliberais e os contestadores que massacram e sufocam  os oprimidos e os impuros e os novos e neos de toda ordem.

O que se sabe é que até hoje ninguém se entende e o projeto nunca pôde ser concluído porque seus objetivos não convergiam, suas doutrinas se corrompiam e suas ideias se contradiziam. Por isso estão todos mortos, mas não o sabem. Vagam e discursam como fantasmas e conspiram uns contra os outros até que o Senhor desça novamente e vos decrete a morte.

Que ciência é essa? Eu não conheço e certamente seus filhos também não, mas é sabido que fundaram uma sociedade para reagir contra o mal do mundo e nos convida a todos a ser acionistas. A eles respondo com o cântico negro de um poeta português.