segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Estado, Mercado, Políticas Públicas e o cinismo de Ana

Ana encarnava o preceito de ser ética defendendo que era necessário manter-se ético nas escolhas econômicas e sociais e para tudo usava a racionalidade acrescida de bom senso e uma boa dose de ética. Certa vez Ana teve um filho a quem muito amava e em todas as escolhas de consumo Ana sempre optava por aquele que respeitava os seus princípios até que a criança atinge a idade escolar e tem início o dilema de Ana. Ana era uma mulher de posses, mas acreditava no ensino público embora todos os indicadores, palpites, opiniões e algumas constatações indicassem o contrário, mas Ana não se dobrava, mantendo-se firme em sua ideologia, ao mesmo tempo em que observava o quão frágil e precioso era o seu filhinho. Então a ideologia de Ana expõe sua fissura. Havia ali uma linha de fuga quando Ana constata que a segurança do sistema de ensino público era demasiadamente frágil e colocava em risco a integridade do seu filho querido. Como resolver tal caso? Era certo abrir mão de uma decisão que considerava ética em detrimento da segurança do filhinho ou era preciso abdicar da ética em prol do interesse individual? Ana não se conformava com qualquer das duas possibilidades. Estava certa de que não poderia abrir mão dos seus princípios e se debruça para uma solução. Ana resolve o dilema: decide ela que enquanto o seu pequerrucho necessita de proteção e que sua vida é muito preciosa para correr risco num sistema frágil ela deverá prover o filho com uma educação privada que oferece melhor segurança e que quando ele estivesse maior, depois de preparada as suas defesas, ela poderá finalmente cumprir com sua ‘obrigação’ ética e matricular o filho numa escola pública. Vejam! Ana resolve o dilema de maneira ética já que conseguiu dar a volta nos seus princípios e achar uma solução para o seu problema. 
Ana é uma cínica. Cínica porque os seus princípios duram apenas enquanto os seus interesses privados não estão em jogo. Ana acovardou-se. Acovardou-se por não admitir que embora não seja imoral, não é ética. Ana não faz a distinção entre ética e moral e corrompe a ética para que ela caiba nos seus preceitos morais – igualmente cínicos. Ana permitiu que a insegurança persistisse e matasse potencialmente os filhos dos outros quando foge da luta. Assume, sem o querer, uma atitude egoísta por julgar que a vida do seu filho vale mais que a vida de outros filhos. Por definição Ana é um homo oeconomicus cujos arranjos que contornam suas escolhas possuem um misto de moral e interesses individuais mascarados pelo bem-estar geral e princípios louváveis com uma dose de meio termo. A ideologia de Ana é cínica e as decisões das Anas permitiram o desmantelamento do sistema público de educação.
João acreditava no transporte público. Era um ambientalista e ficava pasmo com a quantidade de carros que transitava e a maioria deles levando apenas o motorista. Diariamente lá estava João à espera do ônibus, do metrô, do comboio ou montado em sua bicicleta. Mas um dia João enfrenta um dilema: ele passa a sofrer de sinusite. João não pode mais tomar chuva, expor-se ao vento, às longas esperas nas paragens que eram muito frias, os autocarros não eram tão constantes, as estações distantes e João enfrenta o dilema de manter os seus princípios ou curar sua sinusite. João encontra uma solução: usa as suas economias para comprar um carro para usar nos dias mais frios, chuvosos ou quando estiver indisposto, ou quando sair à noite, ou quando quiser namorar etc. etc.
João, enquanto idealista, é igualmente cínico porque finge desconhecer que dentre os seus antigos companheiros usuários do transporte público encontram-se cegos, aleijados, resfriados, doentes agudos, crônicos, terminais, asmáticos, alérgicos e toda sorte de infelizes da saúde. João foge da luta e abandona os mais fracos à sua sorte. João não se apercebe que ajudou a enfraquecer ainda mais o serviço de transporte e nem se atentou que os interesses coletivos devem coincidir com o seu. Viva Adam Smith pois que se apercebeu desse comportamento!
Manuel é um gajo saudável. Nunca adoece. Das poucas vezes que necessitou ir ao médico procurou o posto de saúde do seu bairro e sempre defendeu o sistema público de saúde. Operou a sua mãe, internou o seu pai, acompanhou o parto da sua prima e levava sempre seus amigos que se excediam na bebida. Manuel casou-se. Sua mulher engravidou e em breve terá de dar a luz nas mesmas condições que sua prima. Manuel descobre que terá de enfrentar rotinas mensais, exames e controles e percebe algumas dificuldades. Manuel pensa no filho pequenino sofrendo tais transtornos. Pensa na possibilidade de uma emergência médica, no parto da sua esposa e enfrenta um dilema: mantém os seus princípios éticos e continua usando o sistema público de saúde ou é necessário que, como provedor da família, proteja e defenda a vida dos seus rebentos e o bem-estar da sua esposa; afinal de contas tinha ele condições de pagar um seguro de saúde. Manuel resolve o dilema: faz um plano de saúde para usar em situações que envolvem risco e para as consultas simples ele continuará usando o sistema público de saúde.
Manuel, em sua nobreza, foi um nobre cínico. Cínico como todo liberal que de liberal só tem o discurso. Não refletiu o suficiente para entender que milhares de mães, pais, irmãs, primas e tios dos cidadãos continuarão passando pelas dificuldades do sistema público de saúde. O covarde Manuel foge da luta. Não aproveita a ocasião de lutar com voz ativa para um sistema mais seguro e menos dificultoso. Manuel abaixa a bandeira e abre a carteira quando os seus interesses pessoais gritam.
Jacinto, Maria e José usam todos os sistemas de serviço público. Todos os três necessitam de serviços melhores por razões justas e diversas. Todos os três acreditam que os sistemas poderiam ser melhores. Todos os três têm um dilema: não dispõem de escolha por causa da restrição orçamentária. Eles resolvem o dilema: Confiemos na sorte e esperemos novos políticos menos corruptos e pessoas com voz ativa para juntar-se à nossa causa!
É certo que apelamos para o extremismo e até para o sarcasmo, mas se não destacamos as cores, tudo se torna pardo e relativo. Historicamente os serviços públicos oferecidos pelo Estado sofrem um desmantelamento com a saída de classe média como usuária do sistema. Na medida em que o Estado se enfraquece (ou, o que é mais correto dizer, os serviços) e a renda média dos operários aumenta pela intensificação da industrialização e conquista de direitos trabalhistas, a classe média se fortalece e passa a demandar um serviço mais eficiente de saúde, educação, abandonando completamente os serviços públicos e assistenciais, assim como os espaços públicos ganham desprezos crescentes. Por consequência ou por coincidência (como queiram compreender) a queda da qualidade dos serviços não se deteve. De fato a classe média abandona as classes economicamente baixas à própria sorte porque era ainda um público com voz embargada, sem condições de barganha, tendo a necessidade por resignação e a restrição orçamentária por controle de qualidade. A conquista dos direitos passa antes por uma fase – que ainda perdura – que são compreendidos como favores. Tudo o que não é pago não pode ser reclamado. Não havia condições de hastear bandeiras e salvar o filho doente ou protestar e alimentar a prole. Cinicamente a classe média crítica lança dardos com observações e denúncias de problemas que não mais sentiam na pele. Era cômodo criticar algo que não lhe feria diretamente. Assim como é cômodo para algumas ciências permitir que coexistam correntes de pensamento divergentes e totalmente opostas quando o que está em jogo não é a ‘verdade’, mas a vaidade e disputas epistemológicas e de correntes de pensamento.
A eficiência das políticas públicas medida pela corrente dominante defende um meio-termo. Na impossibilidade de bem atender a todos e de resolver todos os conflitos com igual eficácia, encontra termos técnicos e soluções teóricas que resolvem a questão do ponto de vista legal. Suas teorias são formuladas de tal maneira que a convenção assume o papel de equilíbrio. Os acertos são contabilizados pelo menor prejuízo possível. Certamente não faltam bandeiras que dizem: ‘isso não funciona!’ ‘há incoerência em vários pontos!’ e então pensam que ao institucionalizar as críticas estas se tornam de peso. Mais do que isso, pensam ser originais. Vejamos cada ponto:
1-      Há uma dicotomia entre meios-fins insustentável. Quando a teoria dominante diz que muitas vezes os fins justificam os meios, ignora ela que, por estes fins, vidas são dizimadas, infelicidades e transtornos são criados. Certo. A crítica está correta.
E o que se oferece para rechear esse meio? As soluções apontadas acima? A gritante confusão que ainda se faz entre moral e ética, entre legalidade e legitimidade? Não há de fato uma confissão absoluta de que não há saída que não seja pelo eterno meio-termo? Como romper uma lógica com a manutenção do jogo de compensações? Como inverter os valores com os jeitinhos pontuais? Como revolucionar com críticas reacionárias? Como vencer a dicotomia meios-fins se não se resolve a dicotomia mercado-Estado e se reproduzem sempre tais dicotomias? Em que essa crítica avança para além do que a filosofia já o fez?
2-      Eficiência: um conceito ético - não é um critério moralmente neutro. Certamente que qualquer parâmetro que qualifique o que é ou não eficiente, o que é ou não prioritário é normativo e, portanto, faz juízo de valor, sendo de ordem moral. Certo. A crítica está correta.
E que tipo de moral se faz uso para essa crítica que arrogantemente se põe no lugar da ética? E que avanço se pode oferecer à sociedade se a ética passa a ser moral e a economia liberal capitalista é antes a mais moral de todas? É moral porque estabelece regras e leis, muito embora não tenha compromisso com a felicidade ou com a vida. Moral quando fornece meios de sobrevivência indicando requisitos do mérito e dos esforços individuais para a conquista de bens escassos vendidos e distribuídos de acordo com leis e regras de mercado. É moral ainda quando forma um arsenal jurídico que normatiza e julga cada ato dos agentes e se submete a esse sistema de maneira subserviente. Moral porque obedece a um conjunto de teorias que se legitima secularmente sem nunca ser subjugado. É moral porque permite a morte e o sofrimento de alguns em prol da vida e felicidade da maioria. É moral porque a escassez das coisas a permite ser e não se apela à vontade de salvar vidas, mas antes à insuficiência de salvar todas.
Uma sociedade ética, uma ciência ética só pode ser aquela que ultrapassa os meios-termos, que julgue a vida como absoluta e a felicidade como princípio. A atitude ética permite derrubar padrões, abolir leis e tratados porque a ética não se propõe obediente aos padrões morais ao mesmo tempo em que não prega a imoralidade, mas transcende a própria moral. Não tem compromisso com teorias ou modelos, nem com bandeiras ou decretos e não quer se ocupar com a sobrevivência humana como a arcaica economia faz. Ela se ocupa da vida e da potência dos indivíduos como agentes transformadores por meio da ação e da reflexão. Ela permite o exercício das profissões e o avanço da ciência desde que estes não se estacionem nas amarras morais. Uma teoria que se acovarda por um relativismo estéril não pode, em absoluto, ser ética.
3-      Impossível separação entre valor de produção e estrutura institucional da economia. Ora, é evidente que por detrás da lei da oferta e da demanda existe toda uma estrutura que dá suporte. Os arranjos organizacionais do sistema econômico predizem essa constatação. Os custos de transações, os custos sociais, as externalidades, as ações subjetivas, decisões e jogos ocultos certamente alteram o resultado dessa lei soberana. Isso também é certo, mas há uma ponderação a fazer. Os próprios neoclássicos conhecem e admitem essas variáveis ao inserir nos modelos a hipótese coeteris paribus. Não são insanos em pensar que nada existe além de uma mão invisível. Percebem eles a existência de situações que podem alterar o resultado, mas logo se defendem dizendo nas entrelinhas: sabemos que existe algo mais, mas nosso modelo não permite a inclusão de outras incógnitas, portanto, se todas as demais coisas permanecerem constantes (confiemos na sorte), o resultado será este.
Ou seja, a crítica está mal localizada. Não há um desconhecimento das estruturas institucionais e produtivas, simplesmente a condição coeteris paribus não funciona nunca. Contudo também sabem disso por isso criaram a ideia de mercado idealizado e perfeito que serve simplesmente para modelação e classificação dos mercados de acordo com o seu afastamento do modelo ideal, ou seja, com o grau de imperfeição. A crítica novamente não está bem localizada. Não podemos simplificar dizendo: não sabem o que dizem! Ou: a realidade é bem outra que o descrito em suas teorias! De fato sabem muito bem o que dizem, mas se defendem: não há como prever o movimento de uma bailarina, mas há como prever o movimento de um ser racional limitado por restrições. E nisso estão todos de acordo, embora seus críticos digam: saiam e deixem o lugar vazio para que pensemos o que colocaremos aí!
Uma visão revolucionária compreenderia o deslocamento das dinâmicas e valores sociais e não se prenderiam em questões óbvias sustentadas pela comodidade dos economistas e pela falta de radicalidade dos seus críticos. Não é produtivo direcionar as críticas para as correntes de pensamento quando os pressupostos da própria ciência, em sua acepção moderna, é que não são mais válidos!
4-      Eficiência econômica x Eficiência social. A falta de compreensão de que ações econômicas geram efeitos na sociedade. São os chamados efeitos colaterais existentes pela dicotomia aceita meios-fins. Não se é possível resolver a questão da eficiência separando as duas esferas. Ou, ainda, os fins deveriam ser sempre sociais e os econômicos seriam apenas os meios. Certo? Errado.
Errado porque a crítica afasta-se novamente do alvo. Ao mesmo tempo em que nega a dicotomia faz uma crítica econômica em prol do social nos seus discursos. O discurso crítico é dicotômico e contraditório porque utiliza a economia como instrumento e a sociedade como um fim ao mesmo tempo em que nega essa distinção e separação. Quando tenta resolver a questão inclui a sociedade nos problemas econômicos e diz apenas: vejam! encontramos um ser subjetivo que atrapalha os modelos neoclássicos! Descobrimos as emoções e os conflitos, mas também não sabemos o que fazer com eles: oferecemos ritalina ou apelamos à anarquia? Denunciamos que o capital financeiro se agigantou porque o dinheiro ganhou pernas longas para longe do fluxo real, mas não temos como medir as coisas - cortemos suas pernas!
A compreensão sistêmica da economia implica em retomar as suas bases e pressupostos originais, ainda que os desconstruam, reconstruam ou avancem. Isso envolve uma discussão profunda do que seja de fato a ciência econômica – a que serve, a quem serve, de que é feita, como é feita e por quê é feita. É essencial compreender ainda onde se localiza o rompimento entre a ciência econômica e a sociedade transformando a oikosnomia em filosofia e chrematistic em economia.
Uma discussão que não tem a sua base por início não pode avançar mais para além de uma crítica teimosa e por vezes rancorosa ao que está exposto e instituído da qual não desejo compartilhar. É desperdiçar o tempo fazendo autópsias. É matar e ressuscitar o mesmo neo-inimigo até que se despeje toda a carga de revolta e mágoa. Lembremos que Mahatma Gandhi libertou seu povo com a desobediência e não com a obediência. Não com a moral (por vezes não o foi), mas pela ética. Assim também foi o mestre da doutrina cristã que desafiou a moral do seu tempo. Que se tenha a coragem de assumir nossa desobediência publicamente como tão lindamente fez um professor e que eu gostaria de ter aplaudido: “o que vocês fazem não é economia, é chrematistic”! evocando novamente a filosofia da economia e a origem dessa ciência.