segunda-feira, 23 de março de 2015

Neofilia: entrave para o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis

 “Vai chegar o tempo em que teremos de tomar consciência de que o maior problema político de nossa época está porventura ligado aos efeitos do domínio crescente que as firmas de estratégia mundial exercem sobre os Estados, não somente no terceiro mundo mas também na Europa”. (GALBRAITH, 1971, p. 91)

A tecnologia, por si só, não subsiste, não se forma. É pela ação e esforços humanos, por suas conjunções culturais e psicológicas, pelos agenciamentos coletivos e subjetivos que perpassa toda a evolução da tecnologia que se apresenta como o patrimônio da humanidade, como o legado da civilização da pré-história humana, conforme a tese de Marx. É por isso mesmo que temos a obrigação da desfazer o culto que a sociedade moderna rende à tecnologia em suas formas de manifestação. Sem compreender o humano em sua formação, sem admitir a primazia dos saberes na constituição do conhecimento, não poderemos pensar na construção de bases tecnológicas que auxilie verdadeiramente as sociedades a sair de seus estados de anomalias sociais, de exploração desumana e de atividades que desprezam a perspectiva criadora abrigada em cada ser. 



Se retornássemos ao tempo da Revolução Industrial, com grande chance identificaríamos que o que ocorreu ali foi a maior transformação e avanço das técnicas produtivas. A tecnologia desponta como a grande conquista da indústria, mas com apelo diferente no que diz respeito à humanidade, à sociedade. Fitando ao longe, do lugar de onde nos posicionamos hoje, certamente que não teremos mais dúvidas de que a maior revolução ocorrida naquele momento foi a das forças sociais e das ideias que propiciaram, por meio da astúcia e perícia dos indivíduos, da revolução das ideias e dos anseios e aliado aos saberes e conhecimento acumulado milenarmente pela sociedade humana. Tudo isso propiciou o maior impulso econômico de todos os tempos. Dessa maneira, considero um erro afirmar que a revolução industrial tenha sido uma revolução essencialmente tecnológica (no sentido restrito de sua apropriação), embora os seus resultados tenham sido. E isso evidencia tantos outros erros pela simplificação ou culto exagerado às técnicas em detrimento dos outros ramos do conhecimento

Por outro lado,  parece uma colocação sem sentido já que não há, essencialmente, oposição entre a tecnologia e o conhecimento acumulado que caracteriza as forças sociais e modifica os sujeitos do processo, mas tal colocação foi proposital para acentuar o grande deslocamento que tem havido, desde então, da relação entre conhecimento e tecnologia de maneira a tornar visível uma certa autonomia e independência da tecnologia, criando uma separação artificial entre a ciência básica/teórica e as aplicadas, segmentando os ramos da ciência de maneira empobrecedora. Tal como aponta Galbraith, há uma relação dinâmica entre a tecnologia e as forças sociais, de maneira equivalente às contradições apontadas por Marx em seu prefácio à Contribuição à critica da economia política.
“Ao examinar-se o intrincado complexo da mudança econômica, a tecnologia, com sua iniciativa própria, é o ponto lógico que se deve considerar. Mas a tecnologia não só provoca mudanças como é uma reação a mudanças. Embora force a especialização, é também resultado da especialização. Embora exija extensa organização, é também resultado de organização.” (GALBRAITH, 1985, p. 26-27)
É aqui que reside uma explicação fundamental sobre a nossa crítica. Não se trata de uma dissertação sobre o que vem a ser a ciência, a tecnologia, a inovação e o conhecimento, nem mesmo a crítica pela crítica de quaisquer dessas categorias. Partimos do ponto de aceitação das convenções usuais do meio acadêmico, acolhendo a hipótese de que as diferenças sutis existentes entre as correntes de pensamento e suas linhas de pesquisas não são fundamentais para o nosso objetivo. É, no fundo uma aproximação provisória sobre as desconstruções, limites e entraves (antítese) que fortalecem a afirmação de que estamos, nesse momento, transitando nesse período peculiar e nevrálgico entre o que ainda é e o que será, entre o velho e o novo e sobretudo entre a pré-história e a história humana propriamente dita com o intuito final e pretensioso de narrar a síntese — o contexto tecnológico da nova humanidade.

Enfoque


A tecnologia e a inovação são temas que ganham relevância exorbitante e provocam algumas reflexões a respeito do seu papel na (e como) ciência e na (e pela) sociedade. Pela primeira via, o que se questiona é o descolamento que parece ter ocorrido entre a ciência fundamental e a tecnologia (aplicada). Uma ruptura radical que pode ser visualizada nos departamentos das universidades, nas grandes firmas, nos órgãos e institutos e, sobretudo, pela divisão e priorização dos investimentos públicos. De fato, há uma legalidade reafirmando tal separação, ela não é mais velada, está disponível em portarias e editais, não sendo mais possível ignorar a centralidade que a tecnologia (limitadamente circunscrita) ocupa na atualidade. 

Por via das políticas públicas, o que buscamos compreender é a sua responsabilidade nesse deslocamento e ainda reposicionar a sua função essencial que julgamos ser a de cunho social, mais precisamente de requalificar a governança no processo de difusão tecnológica. Em outras palavras, no nosso entendimento, a função da tecnologia e da inovação deve subordinar-se às necessidades e anseios sociais e caberia às políticas públicas abarcar esse entendimento mais abrangente da tecnologia para além dos domínios do cientificismo ou técnica aplicada e, mais gravemente, dos domínios das grandes firmas. A quem serve hoje a tecnologia? A quem se destina primordialmente os ganhos da inovação? Como ignorar a disparidade entre as diferentes apropriações dos benefícios e os ganhos destas entre os diversos setores da sociedade?

Aos menos atentos, a resposta viria rapidamente através da observação de que a redução de custos, o aumento da produtividade, das escalas, a melhoria da qualidade dos produtos e serviços, bem como do conforto que a tecnologia e a inovação gera são compartilhados com todos em maior ou menor grau. Isso é certo, mas não nos interessa uma visão panorâmica a respeito das motivações e destinações da inovação tecnológica. Queremos revelar particularidades que ferem o propósito primeiro do atendimento às necessidades humanas e, nesse sentido, não cabe mais a aceitação dócil e legalista das disparidades entre as formas desse atendimento.

O nosso interesse pela tecnologia dá-se limitadamente enquanto ferramenta efetiva e potencial na resolução de problemas para o desenvolvimento social. Por sua vez, a inovação aparece como uma apresentação estratégica de novas tecnologias que embora se utilize como discurso as melhorias sociais, o que está em jogo, de fato, são os ganhos econômicos (de mercado) dela decorrente. Portanto, se o que nos interessa é a função social da tecnologia, a inovação não nos desperta interesse pelo seu aspecto competitivo e de ganhos empresariais. Se estes não forem compartilhados, não estiverem inseridos no contexto de governança, essa corrida à constantes inovações que nada acrescentam de substancial à vida dos indivíduos deve ser de responsabilidade única e exclusiva das firmas e não caberia a pactuação  ou financiamento do Estado (enquanto formas de ganhos de competitividade).

Estabelecemos então primariamente a separação entre a tecnologia e a inovação, e a ciência dessas duas categorias. Após esse movimento trataremos de esboçar algumas críticas preliminares sobre: a relação entre ciência e tecnologia, tornando a primeira soberana e com privilégios; a confusão recorrente entre a tecnologia e a inovação; a prioridade flagrante das políticas públicas para financiamento de pesquisas que atendem primeiramente aos interesses do capital e residualmente aos da sociedade, a subordinação desequilibrada e exageradamente entusiasmada das universidades pelo mercado e mais claramente dizemos: da ciência como meio e fim do sistema de produção capital. Como aponta Fontenelle:

“os negócios têm se tornado cada vez mais acadêmicos, assim como a academia tem se tornado cada vez mais orientada pelos negócios. Assim, ao mesmo tempo que as disciplinas acadêmicas são absorvidas pelo mercado, tornando o capitalismo mais inteligente, fazendo uso de uma força de trabalho altamente qualificada, o aparato discursivo promovido pelas escolas de negócios, segundo Thrift, legitima tal estado de coisas, impondo ao mundo acadêmico uma forma de conhecimento à sua imagem e semelhança, ou seja, uma forma de produção de conhecimento rápida, capaz de atender à sua demanda por uma natureza prática do saber. (FONTENELLE, 2012, p. 100-101)

Da ciência, dos saberes e do conhecimento

“[…] é necessária uma reforma do pensamento. Essa reforma, que inclui o desenvolvimento da contextualização do conhecimento, exige ipso facto a complexificação do conhecimento.” (MORIN, 2011, p. 50)

É inevitável que situemos o campo de produção do conhecimento como palco de um grande movimento que se particulariza a partir da própria ciência, mas que se difunde pelo oportunismo e apropriação do capital para manter o fôlego e os mecanismos de sua reprodução, quando os processos de apropriação de mais~valia absoluta se esgota e os de mais-valia relativa se reconfigura com as políticas de reestruturação do trabalho, mas não o suficiente para manter saciados os ímpetos de acumulação. Por movimento particular, orgânico, por assim dizer, referimo-nos ao procedimento de se fazer ciência que se transforma com o método de Descartes. Mais precisamente, falamos da fragmentação do conhecimento que se apresenta inicialmente como a forma de autonomização da ciência perante a religião e a sua especialização para superar a excessiva abstração e limites da visão aristotélica acerca da realidade que se torna cada vez mais complexa. Todavia, não seria correto admitir que a segmentação do conhecimento e a especialização das disciplinas tenham sido movimentos exógenos que se interiorizam nas universidades. A fragmentação do conhecimento que revitaliza e alavanca as descobertas da ciência produzem seus próprios limites com a excessiva especialização dos campos do conhecimento, particularizando artificialmente esferas da realidade complexas tais como a economia, a política, a sociedade. 
“É dessa complexidade que se afastam os cientistas não apenas burocratizados, mas formados segundo os modelos clássicos de pensamento. Fechados em e por sua disciplina, eles se trancafiam em seu saber parcial, sem duvidar de que só o podem justificar pela idéia geral e mais abstrata, aquela de que é preciso desconfiar das idéias gerais!” (MORIN, 2005, p. 9)
Devemos explicar que a ligação entre o processo de fragmentação do conhecimento, da mercantilização da ciência e da capitalização da tecnologia formam nós que não se dissolvem, antes se complexificam e se naturalizam como parte de um mesmo movimento — daí as dificuldades de se estabelecer as causas que desencadearam o processo vigente. Fundamentamos melhor essa ideia:

"[...] a forma especial do moderno capitalismo ocidental teria sido fortemente influenciada pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje essencialmente dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes. Mas isso significa, basicamente, que é dependente da ciência moderna, em especial das ciências naturais fundadas na matemática e em experimentações exatas e racionais. Por outro lado, o desenvolvimento de tais ciências e das técnicas que nelas se apoiam recebe agora importante estímulo dos interesses capitalísticos quanto a suas aplicações econômicas práticas." (WEBER, 2006, p. 31)
Semelhante denúncia foi feita recentemente por Marilena Chauí. Registrada por Fontenelle, a filósofa aponta para a década de 40 quando a própria ciência passa a estar inserida na lógica de produção capitalista e que esta passa a ditar os rumos das mudanças e paradigmas tecnológicos: “Donde as novas formas de financiamento das pesquisas, a submissão delas às exigências do próprio capital e a transformação da universidade numa organização ou numa entidade operacional” (CHAUÍ, 2003, p. 6)

Se a ciência e a tecnologia têm como motor o mercado, a inovação apresenta-se com uma função limitada. Para que possamos dar conta da profundidade dessa evolução teremos de avançar para outros terrenos que exigem uma diferenciação mínima entre o conhecimento e os saberes humanos. Essa diferença passa a ser relevante já que nos indica uma linha de fuga que se observa nas antíteses - nas contradições do capital.
Utilizaremos aqui a conceituação trazida por Edgar Morin de que o conhecimento é aquele que “permite situar as informações que recebemos no seu contexto geográfico, cultural, social e histórico, que incorpora, para além do cálculo e da racionalidade, a identidade e a diversidade humana. É aqui que o conhecimento e os saberes são compatibilizados, sem que com isso assumam dimensões únicas. Contudo, as bases sociais da humanidade não se constituíram somente por via do conhecimento dado como certo, científico ou sistemático. Nas palavras de Norbert Elias:
“O que com frequência é registrado simplesmente como tipos diferentes de conhecimento, entre eles os tipos mágico-mítico e científico, está interconectado na forma de uma ordem sequencial claramente reconhecível de subida e descida.” (ELIAS, 1998, p. 59)
Por essa razão é que invocamos os saberes para o nível de importância do conhecimento. Ultrapassando  a dimensão divisionária entre conhecimento tácito e conhecimento explícito, reposicionamos os saberes de acordo com a proposição de Ivan Illich, Edgar Morin, Norbert Elias, Michel Foucault e André Gorz, dentre outros. De fato, são os saberes constituídos por meio da interação de indivíduos que favorecem e se favorecem da construção e utilização de novas tecnologias com o poder de expandi-las e aperfeiçoa-las.

A riqueza social

Aqui completamos o nosso raciocínio, sem contudo concluir sua merecida fundamentação (o que não é propósito neste trabalho), ao refazer as relações entre o conhecimento e saberes com a tecnologia e a inovação e posicionamos o Estado e o capital como atores articulados que regulam, legitimam e se apropriam do maior legado da humanidade. Por isso ousamos afirmar que  o produto dessa tecnologia se traduz num novo conceito de riqueza, expondo e ao mesmo tempo desfazendo o parentesco entre a ciência e o capital propiciado pelo agenciamento das políticas do Estado. De acordo com Gorz, o que está em jogo atualmente, além do domínio do capital, é a hegemonia do saber científico dominante. Em suas palavras, diz que:
“todo conhecimento contém necessariamente uma relação implícita com o conhecimento-verdade e com a capacidade de conhecer e de aprender, todo conhecimento, mesmo técnico, é não somente fonte potencial de riqueza e de sentido, mas também de riqueza em si. Como fonte de riqueza ele é força produtiva; como riqueza ele é fonte de sentido e fim em si mesmo.” (GORZ, 2007, p. 55-56)
Essa nova riqueza deverá ser o principal parâmetro a ser discutido coletivamente e o conhecimento será a sua maior base de constituição já que a economia da acumulação de coisas atinge o seu ápice e o seu fim. Os processos produtivos nada mais são que maquinações de produções que nada acrescentam de valores originais. Sobretudo os mecanismos de liberação do homem das atividades inibidoras de potencial devem ser a condição da base tecnológica que ainda antecederá as tecnologias do futuro e que as políticas do conhecimento devem antecipá-las o quanto antes através da liberação da ciência em suas bases institucionais e humanas. Sobre esse ponto, ainda nos Grundrisse, Marx sustenta a tese inicial esboçada neste trabalho da seguinte forma:
“[…] o desenvolvimento da ciência, esta riqueza ideal e ao mesmo tempo prática, é a apenas um aspecto, uma forma, em que se manifesta o desenvolvimento das forças produtivas humanas, i.e., da riqueza. Idealmente, a dissolução de uma forma determinada de consciência bastaria para matar toda uma época. Na realidade, esse limite da consciência corresponde a um determinado grau do desenvolvimento sobre a antiga base, mas desenvolvimento dessa própria base. O máximo desenvolvimento […] é o ponto em que ela própria é elaborada na forma em que é compatível com o máximo desenvolvimento das forças produtivas e também, portanto, com o desenvolvimento mais rico dos indivíduos. Tão logo esse ponto é alcançado, o desenvolvimento seguinte aparece como ruína e o novo desenvolvimento começa sobre uma nova base.” (MARX, 2011, p. 446)
E como poderia o Estado desabrigar esse caráter revolucionário da ciência? As políticas da ciência e do conhecimento que se afastem desse desafio atual, certamente nada produzirá de inovador já que a riqueza é a base de toda especulação da economia política, assim como a política é, por confirmação social, a coordenadora e distribuidora de riqueza em último sentido. Sem algo mais substancial para colocar em seu lugar, a governança ressurge em sua expressão máxima para devolver e convocar a sociedade a assumir o papel como produtores e orientadores de conhecimento.

Historicamente a base tecnológica da sociedade sempre foi constituída por avanços voltados para resolver as questões ligadas à sobrevivência humana. Atualmente as questões passam pelo mesmo ponto, mas deverá suceder-se a um nível mais abrangente já que o ambiente ecológico — passa por transformações que se colocam como intransponíveis. Não obstante, esses ganhos de conhecimento não mais obedecem a uma cegueira e direcionamentos demasiados. São frutos especialmente de consciências coletivas que demandam novas formas de vida, novos prazeres, novos valores, novos conceitos de trabalho que se deslocam da sobrevivência ou necessidades humanas. São os chamados dissidentes do capitalismo que não se subordinam nem a este nem às políticas de Estado. “[…] é preciso que as forças de geração e regeneração contidas na própria natureza do ser humano, como indivíduo e como ser social, despertem e se desenvolvam.” (MORIN, 2011, 162). E esta é a resposta a uma pergunta que se remete a essa tese. “Não pode haver qualquer coisa além da História?” (Ibid, p. 161), ao qual também é respondido por Morin: “[…] esse novo começo significa: recomeço! Outro começo! O que pressupõe que potencialidades de regeneração e criação poderão se revelar e se manifestar potencialidades adormecidas ou inibidas em nosso universo.” (Ibidem, p. 161, grifo nosso).
O impulso tecnológico favorecido pela indústria, sobretudo pelo incentivo do Estado, é hoje capaz de garantir a resolução dos problemas ligados à sobrevivência humana. Se isso não é explícito é porque o capital ainda utiliza de mecanismos artificiais ocultos através das leis de mercado criando escassez onde ela de fato não existe. Se isso é feito sem qualquer escrúpulo com alimentos e bens de atendimento das necessidades humanas imediatas, “não economiza esforços em perverter a especificidade das relações sociais de conhecimento” (GORZ, 2007, p. 56) e por isso as políticas científicas deverão ser dirigidas pela sociedade. A governança dos processos de construção de políticas da ciência e do conhecimento devem ter seus mecanismos ampliados e melhorados para que esse estágio da humanidade - onde a economia é a economia das necessidades humanas - seja superado. A economia das necessidades humanas passa a ser economia da felicidade humana em sua acepção ética e as políticas da ciência e do conhecimento deverão trabalhar em favor desta, obedecendo aos princípios éticos e não estritamente morais.

A problematização do virtuosismo tecnológico

Galbraith (1971) nos lembra que “na teoria ortodoxa, a inovação era uma resposta a uma necessidade que se havia revelado”. Continua ele dizendo que “uma invenção inútil era uma contradição de termos.” O seu posicionamento inaugura uma critica desenvolvida pelo título  “A crise das sociedades industriais” que tece apontamentos a respeito da soberania do mercado sobre a decisão dos indivíduos, impondo seus produtos ao criar necessidades artificiais e bens inúteis, mas totalmente desejáveis. E assim desenvolve o seu argumento: 
“Mas quando o virtuosismo tecnológico se torna um fim em si e se associa a uma vontade de crescimento contínuo, a inovação inútil passa a ser normal. Se é vendável, resulta tão bem como a inovação que servisse para qualquer coisa. E a qualidade é secundária em relação às possibilidades de venda. A inovação inútil e o mau funcionamento deixam pois de ser acidentes do sistema: são elementos estruturais, dados os objetivos prosseguidos pela tecnoestrutura.” (GALBRAITH, 1971, p. 72)
É então, por essa via que pretendemos aprofundar a questão da inovação e das políticas públicas em sua responsabilidade de reforçar e por vezes patrocinar produtos e aspectos negativos da inovação pela inovação. Embora os critérios que caracterizam a inovação passam pelos ganhos para a sociedade, é ingênuo acreditar que todas as quinquilharias desenvolvidas, em grande parte, com financiamento público, sejam de fato essenciais. Ainda mais quando observamos necessidades básicas de sociedades e países sendo negligenciadas como o acesso à água, às tecnologias de inclusão baseadas em contextos culturais particulares, às tecnologias que promovem abundância de bens indispensáveis à sobrevivência humana, alimentos, medicamentos e até moradia. Não é possível ignorar que o conhecimento acumulado pela humanidade, reforçado pelo Estado por meio de políticas educacionais e culturais, pelos saberes dos indivíduos e da coletividade, sejam capitalizados em prol do lucro e redistribuídos pela lógica de mercado. Se isso não bastasse, a pressão dos indivíduos para que sejam incluídos na grande roda do consumo tem derrubado todos os limites entre o necessário e o supérfluo fazendo com que negligenciemos cada vez mais a necessidade de muitos em prol do supérfluo de um grupo seleto com forte dependência em tecnologias de ponta. 

Partindo ainda do mesmo referencial teórico, Galbraith destaca a interdependência entre o Estado e as grandes firmas, onde o primeiro é refém das segundas (já que o principal indicador de saúde econômica é o emprego). As grandes firmas ditam o rumo, a forma e a dinâmica dos novos investimentos e da estrutura dominante da tecnologia, indicando claramente a quem ela serve. Vemos que isto é uma situação que contraria o processo de governança onde se discute apenas os resultados e não suas bases. Em suas palavras: “O Estado é um cliente importante e o seu concurso é indispensável, sobretudo para assegurar o desenvolvimento da tecnologia mais avançada.” (GALBRAITH, 1971, p.120)

Em suma, o rumo das políticas da ciência e tecnologia obedecem a critérios mercadológicos flagrantes. Isso é certo. Mas não será o nosso objetivo reafirmar tais críticas. O que ambicionamos é ultrapassar o terreno da crítica para alavancar estratégicas que promovam as modificações necessárias para que as prioridades elevadas pelas políticas de C&T sejam sobretudo aquelas que promovam e destaquem o potencial humano e, nesse sentido, acelerem a evolução dos sistemas e da sociedade. Isso não será possível sem antes passar por uma revisão profunda sobre as bases do conhecimento, da educação e do contexto de atrelamento entre o trabalho e a sobrevivência humana. Enquanto o trabalho for evidenciado em nossa sociedade como a única forma de sobrevivência, os talentos, as vocações e os rumos tecnológicos potencialmente revolucionários estarão adormecidos para somente despertarem num outro contexto em que a expressão do trabalho e das atividades humanas serão coisas absolutamente distintas e é nesse sentido que a tecnologia emancipará o homem. 

Dizemos isso porque operar governança no contexto dos investimentos das políticas de tecnologia e inovação é promover a imediata liberação do homem das funções alienantes, sejam elas públicas ou privadas. É ainda respeitar os laços entre a cultura e a tecnologia, refazer o diálogo entre a tecnologia e a filosofia, reposicionar as máquinas e equipamentos para o lugar secundário, atribuir pesos relativos de acordo com a utilidade e não com os ganhos da inovação e sobretudo favorecer o desenvolvimento de tecnologias que, de um lado liberem o homem das funções alienantes e, de outro, seja uma constante possibilidade de expansão do potencial criativo humano. E isso só será possível se a tecnologia fizer parte do contexto educacional básico, não somente no sentido mecânico de utilização e compreensão das máquinas e da sua concepção, mas da criação e elaboração de mecanismos superiores, sustentáveis e humanos.

A inovação, para o que a crítica se propõe, é nada mais que a grande distração dos governos em busca de diferenciais e ganhos de competitividade. Uma corrida que se sabe de antemão ter poucos pódiuns e muitas quedas pelo trajeto. Uma disputa pela qual se conhece os termos e a insanidade de uma perseguição sem fim para fins limitados. Uma sujeição absoluta e obstinada a inputs e outputs e tantos outros termos e indicadores que como brisas são assoprados pela agitação e humor do capital financeiro. O desprezo, contudo, não é pela euforia, mas pela euforia do Estado em mirar o alvo em tentativas vãs de conciliar o bem-estar humano com os ganhos capitais da indústria tecnológica e dos oligopólios. Critica-se também a escolha em assumir como responsabilidade aquilo que interessa imediatamente ao capital. Não quer isso dizer que há oposição aos investimentos públicos em tecnologia e em inovação, certamente que deve haver montantes compatíveis com as necessidades sociais, mas com inversão de prioridades, com a única promoção do homem sem que isso se dê na esfera do mercado. Não parece certo que a sociedade se aproprie apenas dos refugos sendo que foi a grande financiadora e promotora: dedicando a força de trabalho, o tempo, o conhecimento,  os saberes, os impostos e, por muitas vezes, renunciando involuntariamente ao prêmio do bem-estar.

A falsa oposição entre Estado e Mercado

Essa mútua dependência dos Estados e das firmas dissolve a dicotomia entre Estado e mercado e revela o engendramento e inseparabilidade entre as duas instâncias, cabendo ao terceiro grupo — das famílias — o papel limitado de clientes e receptores. Esse posicionamento tornam duvidosas as políticas de C&T hoje estabelecidos, por isso uma crítica profunda há de envolver setores básicos como a educação e uma análise política que reconheça a centralidade (e a necessidade de descentralidade) do poder. Essa colocação é assim captada por GALBRAITH (1971):
“A independência da empresa moderna tem aí o seu limite. Ela não pode adaptar os objetivos do Estado às suas próprias necessidades, mas não saberia prosseguir objetivos que estivessem em contradição com os do Estado - que poderia recusar-lhe o que tem para ela importância vital. (GALBRAITH, p.120) 
Talvez por isso e também pelo papel referido por Marx de que a ciência proporciona o desenvolvimento mais rico dos indivíduos, MORIN tenha assim se colocado:
“A ciência é um processo sério demais para ser deixado nas mãos dos cientistas. A ciência se tornou muito perigosa para ser deixada nas mãos dos estadistas e dos Estados. A ciência passou a ser um problema cívico, um problema dos cidadãos”. (MORIN, 2005, p. 133)
Vale sublinhar que a corrida pelo crescimento e desenvolvimento, como metas centrais das políticas de governo, tem como assentamento os processos de acumulação. A esse respeito Celso Furtado dizia que é a grande distração da atual civilização, tendo como busca o eterno utópico. É legitimar paradoxos de uma inovação que constrange a criatividade humana, de tecnologias que geram riquezas e produzem miséria, que moderniza processos e destrói ocupações humanas. A inovação pela inovação não tem serventia social, não gera humanidade, não proporciona progresso social e não compartilha benefícios. A tecnologia pela tecnologia é o caos instaurado na sociedade que contraditoriamente subordina o humano à sua supremacia. Uma nova economia não prescinde da tecnologia, mas não pode somente nela se fundamentar. Ela é o resultado dos esforços humanos - todos eles - e não pode ser soberana. Não pode ser guia, mas deve ser guiada pelos anseios sociais. Não pode subordinar, mas deve ser subordinada aos parâmetros culturais e relacionais das sociedades.
Finalmente, podemos também aceitar que este trabalho trata da força mais poderosa do progresso social: a utopia. É ela o grande horizonte que norteia as formas de existência e  não poderíamos deixar de evocá-la nessa ocasião. Vislumbrar uma sociedade em que a tecnologia sirva ao homem e não o seu contrário é hoje uma utopia, mas não em seu sentido quimérico e sim no que ela encerra de possibilidade. Então que seja ela a ditar novas formas de vida, a preparar a humanidade para a nova sociedade e estruturar uma nova sociedade para a nova humanidade. A nova economia é simplesmente a organização sistêmica desses novos arranjos produtivos, distributivos e vivenciais (não mais de sobrevivência). Que a inovação seja as tecnologias promotoras de vida, de abundância, de inclusão e de relações. Que as instituições se apropriem dela para a promoção da  governança e de tecnologias humanizadas. E o que foi perdido, seja imediatamente restaurado:
“Quanto à economia, ela é uma ciência extremamente bela. Por quê? Porque seu objeto é considerado em números, em quantidades. […] Nessa perfeição, porém, o que foi que se perdeu: o corpo, o sangue, as paixões, os sofrimentos, as felicidades, as culturas. Esse é o problema da realidade atual, em que a política se colocou totalmente a reboque do econômico e esquece o corpo e o sangue da vida.” (MORIN, 2011, p. 141)



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